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1 + 7 Arte Contemporânea no Espírito Santo – Dez anos Museu Vale
 02.Nov.2008 a 15.Fev.2009

O Museu Vale faz dez anos

O Museu Vale comemora em outubro de 2008 os seus dez anos. Como toda comemoração celebra o que é memorável a fim de consagrar uma história, o motivo principal deste texto é recordar a memória do Museu Vale para manifestar o que constitui a sua identidade fundamental.

Em seu propósito de desenvolvimento sustentável, a Fundação Vale inaugurou o Museu Vale – localizado no edifício da antiga Estação Ferroviária Pedro Nolasco, no bairro de Argolas, município de Vila Velha, ES – em outubro de 1998, com o objetivo de formar um centro histórico, artístico e cultural para educar e, assim, promover a cidadania de nossa população. Relacionando o passado com o futuro, o Museu Vale propõe-se, de um lado, a resgatar, preservar e mostrar tanto os registros de mais de cem anos da Estrada de Ferro Vitória a Minas, quanto a história da Vale no Brasil, e, de outro lado, a realizar exposições e reflexões sobre a arte contemporânea, a fim de formar e educar o cidadão capixaba. Estruturado em três núcleos – memória ferroviária, arte contemporânea e arte-educação –, com o enfoque na difusão da arte contemporânea brasileira e na preservação da memória ferroviária, o Museu Vale realiza atualmente exposições de arte contemporânea, seminários internacionais de arte e filosofia, workshops de arte-educação para estudantes e professores, oficinas de capacitação profissional, conversas entre o público e o artista expositor/curador, bem como edita publicações de arte e de pensamento, visando promover diversidade cultural e formação educacional, profissional e crítico-filosófica (por meio dos Seminários Internacionais e das conversas com artistas/curadores). 

Em destaque:

Programa Educativo

Tendo como base a história da ferrovia e as exposições de arte contemporânea, o Programa Educativo propõe formar crianças e adolescentes por meio da experiência da arte. O programa recebe uma média mensal de 3.500 jovens de 6 a 16 anos, dos quais 80% são de escolas públicas do ensino médio e fundamental, que participam de workshops das exposições realizadas no ano. O workshop é um projeto proposto pelo artista ou por um arte-educador, e ministrado por estudantes universitários que, juntamente com os monitores, são especialmente preparados para essa atividade. Primeiramente, os professores são capacitados em arte-educação e, posteriormente, trazem seus alunos aos workshops das exposições em cartaz. 

Como um desdobramento do Programa Educativo, em 2005 foi implementada uma iniciativa que capacita jovens em ofícios relativos à montagem das exposições. Em cada exposição, um grupo de jovens de comunidades vizinhas ao Museu participa da montagem da exposição, em conjunto com as equipes de profissionais especializados das áreas de iluminação, marcenaria, serralheria, pintura, comunicação visual e cenografia.

Seminários internacionais

Evento anual que, com um público com mais de quatrocentas pessoas por dia, reúne durante cinco dias artistas, críticos, curadores, filósofos e estudiosos da arte para apresentar e discutir questões fundamentais da arte e da cultura contemporânea. A cada seminário, o Museu publica um livro com os textos dos palestrantes, que é oferecido gratuitamente ao público no momento da inscrição e distribuído, posteriormente, para bibliotecas, instituições de ensino, artistas e críticos do país.

Conversas com artistas/curadores

A cada exposição de arte, é realizada uma conversa entre o artista e o curador, com a participação do público, acerca do processo de criação e sentidos artísticos da exposição.

Após dez anos de atividades, com o desenvolvimento e consolidação deste seu projeto, o Museu Vale tornou-se, estadual, nacional e internacionalmente, uma referência exemplar de instituição promotora de arte, cultura e educação, atendendo, apenas no ano de 2007, a um público de 90.161 pessoas. Todavia, embora todas essas realizações sejam memoráveis, o feito que mais queremos aqui celebrar e consagrar não é nenhum dos relatados acima. O personagem Riobaldo, do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, ao terminar de contar o fato que foi decisivo em sua vida, após indicar que sentiu “uma transformação pesável”, conclui: Muita coisa importante falta nome. O que queremos indicar como o mais importante são exatamente as transformações “pesáveis” que, durante estes dez anos, o Museu Vale promoveu no bairro de Argolas, em Vila Velha e em Vitória, no Espírito Santo e no Brasil, mas que faltam nome. 

A dificuldade de se falar do que é mais importante em uma instituição promotora de arte e pensamento está na ausência de medidas objetivas para avaliar as transformações dos homens e de sua cultura que a arte e o pensamento promovem. Porém, ao contrário de nos calar diante dessa dificuldade, devemos indicar que, apesar de faltarem palavras, o Museu Vale produziu uma enorme transformação individual, social, artística e cultural, na comunidade, no bairro, no município, no estado e no país. Por tudo isso, tanto pela recordação do que foi possível ser dito, quanto pela indicação do que teve que ser silenciado, parabéns pelos dez anos de vida do Museu Vale.

Ao logo destes dez anos, o Museu Vale instigou e desafiou a percepção e a reflexão crítica, e exigiu o redimensionamento dos projetos poéticos de alguns dos mais experimentados artistas brasileiros. Se a grandiosidade do espaço físico do Museu Vale é por si só desafiadora, a elaboração de projetos in situ que dialoguem com os diferentes aspectos sociais, humanos, culturais e econômicos que permeiam o entorno do Museu exige uma atualização ou uma reformulação das respectivas poéticas dos artistas. Os resultados desse diálogo efetivo entre “eu” e o “outro” não podiam ser mais surpreendentes e instigantes, pois têm revelado que, nesse processo de análise/reflexão/criação, desvela-se, acima de tudo, um efetivo processo de alteridade. 

O amplo espectro de linguagens poéticas, atitudes criativas, a variedade de materiais (dos mais frágeis à tecnologia de ponta) e o caráter inusitado das propostas apresentadas pelos artistas que integram a mostra comemorativa 1 + 7 apenas confirmam que a relação arte/vida são dimensões indissociáveis.

Artistas

Regina Chulan, nascida em Vitória (ES), em 1950. Em 1975 transferiu-se para Londres (Inglaterra), onde freqüentou a Heatherley School of Fine Art. Em 1981 fixou residência em Lisboa (Portugal), onde se licenciou em Pintura pela Escola Superior de Belas Artes. Participa de mostras coletivas e individuais, no Brasil e no exterior, desde a década de 1980. Entre as individuais realizadas pela artista vale citar: Galeria Usina Arte Contemporânea (Vitória), 1988; Galeria Pedro Guimarães, Porto (Portugal), 1990; Galeria São Bento (Lisboa), 1993; Fundação das Casas de Fronteira e Aloma (Lisboa), 1996; Biblioteca Calouste Gulbenkian (Lisboa), 1998; Galeria LAG (Lisboa), 2003; OÁ-Espaço de Arte (Vitória), 2008.

Felipe Borba, nascido em Resplendor (MG) em 1984. Em 1999 fixou residência em Vitória (ES), onde cursa Artes Plásticas na Universidade Federal do ES. Desenvolve projetos artísticos em forma de instalações e intervenções urbanas com grafite, nos quais o desenho é o principal meio expressivo. Participou de mostras coletivas de alunos do Centro de Artes da UFES e em espaços não convencionais.

Tom Boechat nasceu em Divinópolis, MG, em 1971. Vive e trabalha em Vitória, onde atende ao mercado institucional, editorial e publicitário. Entre 1993 e 1997 estudou fotografia no ICP – International Center of Photography (Nova York) e produziu ensaios fotográficos de músicos que atuam no metrô da mesma cidade e músicos negros que vivem e trabalham no Harlem. Profissionalmente produziu ensaios comissionados pelo Conselho Mundial de Igrejas e para a Gazeta Mercantil, no Rio de Janeiro (1997-1999). Residiu e trabalhou em Tóquio (Japão), de 2005 a 2006, onde produziu a série fotográfica Toquiotas. 

Paulo Vivacqua nasceu na cidade de Vitória. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Músico de formação erudita, nos últimos anos, sem abandonar a atividade musical, passou a desenvolver esculturas sonoras e instalações, com pesquisas de sons e de materiais. Entre 2000 e 2008 recebeu bolsas de estudos e premiações no Brasil e no exterior, entre os quais: Rumos, Itaúcultural; Projéteis, Prêmio Funarte; Prêmio SESC Marcantonio Vilaça; Open Sutdio Project, Cairo (Egito). Participou de inúmeras mostras coletivas e realizou individuais no Brasil e no exterior. Entre as individuais vale destacar: Móbile, Ateliê Finep, Paço Imperial (RJ, 2000; Escape, El Museo del Barrio, Nova York (EUA), 2002; Projeto Respiração, Fundação Eva Klabin (RJ), 2006; A Escuta do olho e o olhar do ouvido, Galeria Matias Brotas (Vitória), 2007.

Cine Falcatrua iniciou a exibição de filmes baixados da Internet, em sessões semanais gratuitas, no campus universitário da UFES, em 2004, como um projeto de extensão de alunos dos cursos de Comunicação Social e Artes da mesma Universidade. Por essa razão os integrantes do grupo vão variando de ano para ano. Transformou-se numa sala de projeção nômade, que saiu do circuito interno da Universidade para os bairros da periferia de Vitória e do interior do Estado, mediante a utilização de equipamentos digitais, tela de projeção e cabos, o que remete ao funcionamento do circuito cinematográfico convencional. A proposta do grupo é democratizar a cultura e questionar o controle da produção e distribuição do audiovisual e o poder auferido pela indústria cultural.

Gustavo Colodetti Vilar, nasceu na cidade de Vitória, em 1978. Neto de ferreiro e filho de escultor desenvolveu o interesse pela alquimia dos metais e do fogo ainda da infância. Na década de 1990 interessou-se pela cutelaria, realizando diversos cursos para se aperfeiçoar. O ineditismo de sua pesquisa e o design de seus objetos fez com que seu trabalho alcançasse rápida aceitação. Tem participado de mostras no Brasil e no exterior: São Paulo, Brasília, Rio Grande do Sul, Estado Unidos, China.

Álvaro Abreu, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES), em 1947. Engenheiro mecânico de formação. Foi professor adjunto da Universidade Federal do ES e hoje é diretor de empresa especializada e, gestão avançada na área de produção. Depois de sofrer um infarto na década de 1990, começou a elaborar objetos artesanais de bambu, recorrendo a ferramental elementar: foice, facas, goivas, lixas d´água e lâminas de vidro. Esses objetos, que o autor denomina de colheres, têm sido expostos em vários estados brasileiros e no exterior: São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, Minas Gerais, Brasília, Áustria, Alemanha.

Dionísio Del Santo, nasceu em Colatina (ES), em 1925 e faleceu em Vitória, em janeiro de 1999. Pintor e artista gráfico autodidata. Radicou-se no Rio de Janeiro, em 1947, cidade onde realizou alguns cursos livres e desenvolveu uma carreira profissional exemplar. Recorreu inicialmente a uma linguagem expressionista, mas no final da década de 1950, aderiu ao concretismo, atuando à margem dos grupos hegemônicos. Em 1967, sua obra gráfica recebia o Prêmio Itamarati (Aquisição), na IX Bienal de São Paulo, ao qual se seguiram outras premiações importantes. Realizou mostras individuais e participou de coletivas nas principais instituições culturais brasileiras. 

Curadora

Materialidade e imaterialidade na arte do nosso tempo

Ao completar dez anos de existência, o Museu Vale elege como protagonistas de sua mostra comemorativa artistas que se expressam por linguagens e propostas poéticas heterogêneas, formalizadas individual ou coletivamente. Isso significa que o convite formulado aos artistas que integram o evento 1+7 não se pautou pela tentativa de articular qualquer unidade entre as poéticas, nem por buscar analogia entre as praxes e suas respectivas concepções intelectivas e instaurações criativas. A idéia é assinalar a diversidade e o ecletismo das propostas, interesses, procedimento e atitudes que traduzem questões específicas da arte da atualidade.

Revitalizando linguagens e atualizando processos próprios da modernidade ou assumindo uma atitude nômade diante do universo das imagens do passado recente ou remoto, recodificadas por meios tecnológicos e socializadas pela internet, cada artista assume um novo posicionamento crítico em relação ao tradicional conceito de arte e de artista. A liberdade com que elegem códigos do passado, para engendrar com eles ou a partir deles novas gramáticas, e a maneira inusitada como formalizam seus respectivos projetos expressivos são reveladores de que a arte do nosso tempo busca estabelecer novos paradigmas estéticos.

A vinculação das propostas de alguns de nossos artistas a procedimentos e linguagens da modernidade precisa ser relativizada, considerando que, nas produções atuais, desvelam-se atitudes e procedimentos que problematizam ou atualizam as linguagens, mas também se distanciam e põem em xeque os conceitos programáticos da modernidade. Basta atinar para a maneira como cada um revitaliza, recodifica e hibridiza processos, materiais e linguagens de diferentes origens e tempos, rompendo com a idéia de “pureza” propugnada por seus antecessores.

Isentos de qualquer compromisso com a idéia de continuidade e originalidade, os artistas contemporâneos também se libertaram do trauma da novidade, isto é, da busca sem trégua do novo pelo novo. Por esse viés, compreende-se melhor as opções individuais e até a diversidade de praxes, concepções criativas e junções inusitadas de gramáticas e materiais, ou a recorrência tanto a processos tradicionais como ao emprego de tecnologias de ponta. 

Ao convidar artistas que trabalham com meios e linguagens diferenciadas, a curadoria não teve qualquer intuito de estabelecer analogia ou hierarquização entre eles, mas buscar estabelecer entre as propostas criativas nexos mais ou menos explícitos. Um desses nexos está na inquestionável liberdade e autonomia dos artistas contemporâneos ao se relacionarem com o universo das imagens, processos e linguagens. Outro aspecto que calibra as diferentes atitudes e concepções criativas diz respeito ao emprego de materiais: enquanto, para alguns, a fragilidade, a precariedade e a durabilidade dos mesmos não diminui o interesse por eles, a tentativa de apreender a imaterialidade da luz e do som torna-se a matéria dos trabalhos de outros. O gênero de objeto e a relação que seus autores assumem com o mercado parecem determinantes para se entender as escolhas e o uso de materiais mais ou menos convencionais, resistentes ou de natureza indomável, que asseguram a resistência e a durabilidade ao produto gerado. 

Essa liberdade e diversidade na escolha das praxes, linguagens e processos expressivos atestam que os conceitos de originalidade e de unidade, e a busca ininterrupta pela novidade – que fizeram parte da ruptura vanguardista –, não se colocam mais como anseios ou metas dos artistas contemporâneos. Estes tanto recodificam e ampliam as possibilidades criativas de processos tradicionais – desenho, pintura, objeto, fotografia –, como recorrem a linguagens e materiais heteróclitos – dos mais frágeis e orgânicos aos industrializados. Algumas propostas dão sustentação a idéias que consistem em captar e produzir sons e partituras musicais ou projetar imagens apropriadas da internet, recorrendo a equipamentos de ponta. Algumas dessas experiências poéticas não são produzidas para durar ou serem repetidas, mas geram registros documentais do processo e do resultado final. 

Os trabalhos apresentados nesta mostra comemorativa foram concebidos pelos artistas convidados especificamente para o espaço do museu e tiveram sua concepção expositiva e demarcação espacial definida por eles e pela curadoria. Essa concepção visou respeitar ao máximo as diferentes propostas poéticas e permitir que elas dialoguem e interajam umas com as outras. A idéia é fazer esses diálogos ecoarem, atravessar as obras e apagar as demarcações limítrofes entre os espaços. Instaura-se assim uma tessitura perceptiva em teia, capaz de transformar o espaço expositivo em uma instalação singular e única.

Entre a variada gama de processos e linguagens adotados pelos artistas da atualidade, a instalação é a que mais faz reverberar o conceito de arte impura. Embora formatada e posta em prática pelos artistas modernos, foi atualizada e reordenada na contemporaneidade. Depositária de objetos e linguagens diferenciadas, a instalação potencializa os conceitos de “hibridismo” ou de “mestiçagem” (salvaguardadas as diferenciações e especificidades de ambos), reafirma a idéia de arte impura e de obra expandida.

Por sua peculiaridade e concepção espacial, a instalação permite, ainda, que o público penetre, transite e insira-se literalmente no centro da obra, aproximação essa que modifica e potencializa a relação espaço/tempo, público/obra, reflexão/interação. O ato de penetrar e de interagir com a obra faculta ao interlocutor estabelecer uma confabulação íntima com os diferentes objetos artísticos que se oferecem ao toque da mão, ao olhar tátil.

Cada qual à sua maneira procura erodir as antigas demarcações e hierarquias entre linguagens, suportes, meios, estabelecendo novos critérios conceituais e proposições relacionais entre as obras e o espaço expositivo. Para aprofundar a análise e o significado dessa relação de reciprocidade museu/obra, implícita na concepção de obra in situ ou site specific, recorremos à teórica francesa Anne Cauquelin. 

Pautando-se em uma criteriosa análise da modernidade ocidental a partir dos anos 1960, Cauquelin observa que foi nesse período que ocorreu a formulação de um novo conceito artista, de objeto artístico, de espaço expositivo e de espectador, fundamentais para a formulação de novos paradigmas estéticos. 

Com o propósito de instaurar novas idéias e reflexões, a arte assumia, nessa mesma época, um caráter experimental que, além de subverter e soterrar as praxes tradicionais, deixava de privilegiar o olhar, com o intuito de estabelecer uma sinestesia ou uma fenomenologia dos sentidos. Surgia a idéia de arte como processo, em detrimento do objeto e da representação, o que concedia à arte o estatuto de atividade mental e transformava o olho em um “órgão inapetente e fantasmático”, passando a operar na zona do “imaginário e do paradoxal”.

Ao deixar de pleitear ser a representação ou o duplo do mundo, a arte do nosso tempo iria abarcar uma grama díspar de processos ambíguos e conceituais, passando a transitar em um interstício gasoso ou fugaz: contínuo/fragmentário, concreção/simulação, certeza/dúvida, fixidez/instabilidade, material/imaterial (CAUQUELIN, 2006, p. 47-59). 

Cauquelin observa ainda que, de modo especial, os artistas que desenvolveram propostas ligadas à Land Art optaram por desenvolver seus trabalhos artísticos à margem dos espaços institucionais. As dimensões descomunais e o caráter radical das propostas dos artistas foram determinantes para a inserção na natureza das primeiras obras site specific, naquela mesma época. O mundo natural tornava-se, assim, parte intrínseca das propostas e ações e tornava obsoleta a propalada neutralidade do espaço em relação à obra.

O museu passava a ser considerado incapaz de abrigar as produções contemporâneas, em razão das dimensões inusitadas destas, da especificidade dos materiais e dos meios necessários à concreção das propostas. Paradoxalmente, a atitude criativa da maioria desses projetos postulava a idéia de “esvaziar”, de criar o “vazio”, de desmaterializar ou de atuar na fronteira entre material e imaterial (CAUQUELIN, 2006, p. 50). 

Para afirmar e resgatar a potência do museu como espaço estimulador e acolhedor das novas propostas artísticas, foi preciso repensar maneiras de inseri-las no seu espaço. Para caracterizar essa inserção e a relação de dependência mútua museu/obra, adotou-se a mesma nomenclatura criada anteriormente pelos artistas modernos. Para a teórica francesa, os conceitos de insitu, site specific e exsite foram revitalizados e redimensionados em função do seu sentido original de ousadia e de rebeldia.

A idéia de obra insitu postulava que o objeto artístico produzido para o museu articulava ali o seu próprio espaço e se confundia com ele. O site specific demarcava, portanto, a relação de reciprocidade que se estabelece entre o corpo/objeto e o espaço acolhedor do museu. 

Por sua própria natureza, o museu não abrigará, a não ser por tempo muito curto, os objetos concebidos para seu espaço e escala. Findo esse tempo, a instituição cultural deixa de ter qualquer compromisso com aquele corpo/obra e o descarta, devolvendo-o ao mercado com um novo estatuto: a fama. O corpo gerado para o site specific acaba por inserir-se em uma outra categoria contemporânea, a de exsite, razão que leva Cauquelin (2006, p. 49-50) a concluir que, 

“não é então o lugar que terá uma especificidade destacada, nem tampouco a obra, mas o que importa são as conexões que se estabelecem entre os dois. (…) Porque esse lugar-obra fechado sobre si mesmo, agarrado à sua própria identidade, define, entretanto, sua incompletude; designa aquilo que lhe falta, razão por que precisa procurar um espaço onde se expandir, um espaço não ocupado por outros corpos: simplesmente o incorporal, o vazio. (…) A galeria ou o museu são por sua vez espaços do vazio, na medida em que eles podem acolher qualquer corpo, em qualquer momento, sem permanecer definitivamente ligados aos objetos que expõem, a não ser para os re-nomear mutuamente, no sentido de que é lá que as obras adquirem outra dimensão – a fama, o renome”.

A mostra comemorativa 1+7 rende também homenagem ao pintor e gravador capixaba Dionísio Del Santo, falecido em Vitória também há dez anos. A inclusão de um artista moderno em uma exposição de produções recentes não visa tecer comparações históricas entre passado e presente. Nesse sentido, é novamente Cauquelin quem adverte que ao se tentar entender “o passado como um estrato simultâneo à percepção do presente impede-se o acesso a um imenso estoque (artístico-cultural), separado da compreensão dos diferentes tempos” (CAUQUELIN, 2006, p. 65).

Del Santo foi nossa primeira “ave migratória” a se projetar no cenário artístico nacional. Inquieto, audaz e corajoso, logo se distanciava da representação mimética e da idéia de paisagem como identidade, que nos foi impingida equivocadamente, para adotar uma gramática abstrata de matriz construtiva, como a principal articuladora de seu projeto poético. 

O impacto inicial causado pela linguagem concretista – em um país que mal conseguiu assimilar as gramáticas modernas de matriz figurativa –, logo se transformou em fascínio, contaminando com seu ideário os principais artistas brasileiros entre a década de 1950 e a metade da seguinte. Embora não participasse ativa e diretamente dos grupos concretos, nem declarasse seu apreço pelo ideário que embasou tal gramática, o capixaba afinava as cordas de sua poética com aquela vertente. Desenvolveu uma atividade e uma consciência artística e profissional coerente, angariando algum reconhecimento e premiações, como artista gráfico. Amigo e companheiro de alguns dos principais integrantes do Neoconcretismo carioca, Del Santo declinou do convite para juntar-se ao grupo. Se a recusa visava manter seu projeto livre da camisa de força de teorias e conceitos matemáticos, fechou-lhe também algumas portas, obrigando sua obra a correr pelo lado de fora da raia institucional e a manter-se à margem da historiografia. 

Tímido, de poucas falas e de personalidade embutida, Del Santo preferiu o isolamento solitário no ateliê ao investimento na carreira. Por essa razão, sua obra não teve grande trânsito nas instituições culturais do país e do exterior. No entanto, isso não pode ser colocado como parâmetro para a compreensão do projeto poético do capixaba, que ainda não foi devidamente investigado e contextualizado no âmbito do modernismo brasileiro. 

Embora elaborasse ao longo de mais de cinqüenta anos de trabalho um número bastante expressivo de pinturas, as artes gráficas impulsionaram e redimensionaram seu projeto poético, contribuindo para a renovação de seu repertório visual e conceitual. A descoberta da serigrafia no início da década de 1960 iria introduzir refinamento e mobilidade à linguagem poética, que passava a ser articulada principalmente por linhas paralelas e por cores neutras e secundárias. Chamava atenção da crítica também por ter desmontado as principais características da gravura: a reprodutibilidade e a seriação, mas também pelo equilíbrio e originalidade de suas composições e por sua ousadia na associação das cores.

Por um processo experimental que denominou de “permutação”, fez tiragens de obras únicas, interferindo na matriz com materiais variados. Esse laboratório criativo também respaldou e articulou as sintaxes visuais e cromáticas de muitas de suas pinturas.

Entretanto, se parece consenso que a formulação poética da gravura superou as qualidades de sua obra pictórica, o destaque concedido à primeira colocava a pintura do artista na berlinda. Por essa razão, mesmo as séries mais marcantes acabaram praticamente ignoradas e desconhecidas. Desse destino, não escaparam os relevos construídos recorrendo a fios e cordéis e que mantêm alguma vinculação com as Fisiocromias de Carlos Cruz-Diez (artista venezuelano radicado em Paris) ou mesmo com concretistas brasileiros (Aluísio Carvão, Ivan Serpa, Maurício Nogueira Lima, Lothar Charoux).

Del Santo realizou a primeira mostra de obras abstratas em Vitória em 1977. Veio a convite da professora Jerusa Samú, então coordenadora da recém-criada Galeria de Arte e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na Capela de Santa Luzia, para ali expor suas obras e ministrar uma oficina de serigrafia na Universidade. O artista recebeu o convite com entusiasmo, consciente de que foi preciso esperar trinta anos (fixou-se no Rio de Janeiro em 1947) para que os conterrâneos reconhecessem seu mérito. Mas antes tarde do que nunca! 

A mostra individual e o curso de gravura ministrado por Del Santo tiveram significativa importância, seja para tornar mais claras as premissas das vanguardas (mesmo que tardiamente), seja para começar a demover o tabu que pairava sobre as gramáticas artísticas não representativas, por parte dos capixabas. As propostas criativas e a reflexão teórica postulada pelo artista sobre a linguagem abstrata ajudaram a desanuviar a forte resistência e a cerrada impermeabilidade à sua penetração no âmbito universitário, impostas pelos velhos mestres acadêmicos. Esse panorama pontua, de alguma maneira, os motivos de a obra do artista não ter sido exposta aqui antes daquele ano, mas também assegura a dificuldade de sua compreensão e assimilação no meio local, a contar pelas raríssimas vezes em que teve oportunidade de mostrar aqui sua produção. 

O artista voltava ao estado natal na década de 1990, convidado para ministrar oficina de serigrafia com matriz espontânea no Festival de Verão de Nova Almeida, freqüentada por jovens artistas e estudantes de arte, que demonstraram, quase vinte anos depois do primeiro curso ministrado aqui por Del Santo, o mesmo calibre de interesse e fascínio pela sua experiência didática e fundamentação teórica, como pela benevolência do mestre ao partilhar o que aprendeu pesquisando na inviolável solidão do ateliê.

A reflexão teórica foi uma constante na trajetória do artista, por meio da qual alinhava a configuração do projeto que tinha em mente com a formalização da praxe. A busca dessa sintonia constituía a principal motivação do artista ao escrever parte dos textos de apresentação de suas mostras individuais, sem contar que esses escritos se tornaram fontes em que beberam alguns dos críticos que discorreram sobre seu projeto poético.

Após a morte de Dionísio Del Santo, sua obra foi pouco exposta e investigada, o que contribuiu para que caísse no esquecimento e se tornasse praticamente desconhecida das novas gerações. Tanto por essa razão, como por se entender que ele contribuiu de alguma maneira para a formatação das linguagens modernas e para a gênese de uma transformação do pensamento visual, a homenagem ao artista, permitindo que sua obra estabeleça algum tipo de diálogo com a produção atual, torna-se pertinente.

Entretanto, vale ressaltar que a destinação de uma sala especial à obra gráfica e pictórica do artista concreto não visa, obviamente, estabelecer comparações ou apontar sua divergência e especificidade em relação às sintaxes contemporâneas. Pleiteia revitalizar a memória do artista e retirar sua obra de um injusto esquecimento. Vale ainda considerar que, a cada nova apresentação, a obra do passado revigora-se, atualiza-se e contextualiza-se. 

Ao incorporar objetos representativos das diferentes fases em um novo contexto temporal e espacial, ativa-se o dispositivo que amplifica e atualiza a obra para além de seu próprio tempo, mas também se permite redimensionar algum tipo de urdidura, mesmo que tênue ou subjacente, entre presente e passado.

Os sete artistas e suas propostas criativas

A junção de um conjunto exemplar de praxes, linguagens, suportes, materiais, especialidades e saberes, com os quais lidam os artistas do nosso tempo, configura tanto uma nova formulação poética, como o caráter fragmentário, híbrido, múltiplo, interdisciplinar da arte atual. 

Mantendo-se em sintonia com a produção dos centros hegemônicos do país ou mesmo no plano internacional, a démarche artística atual instaurada pelos artistas atuantes no Espírito Santo inscreve um processo muito vasto de concepções que perpassa tanto as praxes tradicionais, como o emprego de tecnologias de informação e comunicação.

Os objetos artísticos desta mostra possuem uma série extensa de linguagens e concepções visuais e poéticas: desenho, pintura, fotografia, objeto, até processos impuros ou híbridos, em instalações que misturam meios e linguagens diversificadas, incluindo a música, o cinema e o vídeo. Os diferentes projetos criativos promovem, paradoxalmente, o encontro (ou seria o confronto?) entre real e ficcional, proximidade e distanciamento, idéia e representação, pensamento e jogo lúdico, que pontuam a necessidade humana de jogar, comunicar, dialogar, interagir com o mundo, seja para criticá-lo, contestá-lo ou mesmo para se defender dele.

No centro das preocupações de cada artista, aparecem questões específicas de sua época, extensão cultural, formação, visão de mundo, identidades visuais e perceptivas, o que abre perspectivas múltiplas para o polimorfismo artístico atual. Alguns desses artistas procuram conciliar em suas pesquisas determinados recursos eletrônicos digitais com processos artísticos e estéticos tradicionais, como o desenho, a pintura e a fotografia; outros optam por validar praxes expressivas tradicionais – desenho, gravura, pintura, objeto. Cotejam com diferentes suportes, materiais e linguagens: expressionismo, grafite, cultura de massa, cinema, tendências conceituais e processos tecnológicos e interativos, permitindo que o público dialogue e interaja de diferentes maneiras com as propostas.

Com uma longa trajetória artística, iniciada na década de 1970, e uma consolidada carreira internacional, a pintora e desenhista Regina Olivier Chulam retornou recentemente ao estado natal, depois de residir e trabalhar aproximadamente trinta anos em Portugal. 

Optou por se fixar no interior do Estado, em contato com uma natureza tanto bucólica quanto impetuosa da região serrana de Aracê e Pedra Azul. Ali instalou seu ateliê e vem trabalhando com determinação e perseverança para dar continuidade a um processo poético coerente, que preserva ao longo do tempo a mesma homogeneidade, potência criativa e protocolo ético. É nesse cenário de tranqüilidade e isolamento que a pintora articula uma praxe que recodifica aspectos variados do mundo, estabelecendo a partir deles uma relação interior/exterior, direito/avesso, proximidade/distanciamento, ausência/presença, que tem o homem como seu principal foco articulador.

Recorrendo ao desenho e à pintura, a artista faz uma análise meticulosa das emoções, das atitudes e dos sentimentos humanos, pondo em relevo o abandono, o isolamento, a solidão, a ausência, que deixa transparecer em signos pontuais, como o isolamento e a tensão das figuras humanas e as poltronas vazias.

Por meio de inversões e repetições de retratos e auto-retratos em escalas de cores e tons que em algumas pinturas se tornam explosivos e em outras orquestrais, atualiza os códigos visuais e os temas, com o intuito de redimensionar o tempo/memória ou aproximar tempos e espaços distantes ou incongruentes. 

Pautando-se em um domínio técnico e uma potência inventiva admiráveis, a artista adota uma linguagem de caráter expressionista, que se desvela mais intensamente nos retratos. Transfere para essas figuras um sentimento intenso, que se traduz por pinceladas enérgicas e um turbilhão de linhas que não estabelecem limites nem demarcam espaços, mas parecem desmaterializar ou esvaziar os corpos de sua substância, para potencializar sua dimensão interior. Aliás, alguns artistas e teóricos vêm chamando atenção para o surgimento de um novo expressionismo, como forma de ressaltar a incidência de artistas atuais que recodificam essa gramática em suas propostas. Entretanto, essa opção não carrega nenhum sentimento de nostalgia, no sentido de que não impede a artista de estabelecer relações com outras linguagens e códigos da modernidade. 

A pintura de Regina Chulam desde sua origem tem se mostrado uma análise compulsiva do “eu” e do “mundo” que a rodeia. Os auto-retratos são temas recorrentes e se colocam como individuações e como imagens refletidas, que remetem a diferentes maneiras de se ver a si própria. Mas se nas pinturas anteriores a autora se detinha a esquadrinhar uma espécie de galeria de retratos e auto-retratos de pequenas dimensões, exercita-se agora nos grandes formatos. Projeta corpos de formas tensas, músculos enrijecidos, olhares vazios e ensimesmados, elegendo personagens de seu tempo e vivência. Ressalta as aparências instigantes das figuras, que parecem às vezes fora de foco ou inacabadas, sugerindo ao espectador que se trata de um exercício poético, articulado em um instante decisivo. Faz eclodir o impulso do gesto expressivo, a subjetividade e a potência interior ou psicológica dos indivíduos, reordenando as sintaxes construtivas e diversificando as cores. 

Instaura igualmente um laboratório obsessivo de procedimentos e linguagens, para apreender e analisar as diferentes sensações e percepções diante da exuberância da natureza que a rodeia. Atribui às figuras que retrata e aos ícones que projeta ou inventa uma existência e uma unidade próprias. Estrutura-os por meio de esquemas visuais lineares, planos geométricos, cortes inusitados dos objetos e corpos, que às vezes parecem submetidos a esquartejamento. Essa articulação sintética e construtiva das figuras perturba o seu potencial sugestivo e interfere no encadeamento narrativo, para postular um diálogo reflexivo do espectador.

A carga emocional do pincel da pintora desvela-se na ousadia das cores, na ossatura sintética e geométrica das formas, na corporeidade dos objetos e na sensualidade dos entes da natureza, que solicitam um olhar tátil de seus potenciais inquiridores.

Embora colocadas lado a lado como em uma galeria de retratos de pessoas que podem ser identificadas pela autora e instigadas pelo espectador, esses retratados não se encaram nem entreolham. São imagens que, embora pareçam ensimesmadas ou voltadas para dentro de si, para revirar a própria memória, conseguem hipnotizar o interlocutor com seu olhar vazio. 

Esse conjunto de painéis de grandes dimensões articula um horizonte visual bastante original, pois permite aos retratados transitarem de uma galeria visual a outra, postulando articulações e narrativas variadas. Se isso instaura a idéia de trânsito ou de passagem, como forma de redimensionar o tempo, nas expressões das figuras parece possível desvelar efeitos psicológicos ou subjetivos que remetem a medos, desilusões, desalentos, sonhos, entre outros sentimentos humanos. Essa dimensão transitória do homem com o seu tempo/espaço/memória se projeta no aspecto inacabado dos retratados, que em alguns casos parecem perdidos em devaneios, mas em outros instigam o interlocutor a desvelar seus segredos íntimos.

Diferentemente do que ocorria nas vanguardas, em que os artistas procuravam encontrar novos princípios e conceitos estéticos previamente preconizados ou vislumbrados por eles, o projeto poético de Regina Chulam transita em outra direção. Privilegia preferencialmente aspectos sensíveis, emocionais, espirituais, que traduzem e singularizam a relação homem/mundo. Nesse sentido, os retratos inventados pela artista não são feitos para serem simplesmente identificados pelo interlocutor, mas para serem sentidos e interrogados em sua articulação expressiva, iconográfica e poética. Alguns são esboçados sentados, o que acentua a sua fragilidade e desalento; outros assumem uma atitude mais altiva e desafiadora. Enquanto construções artísticas, essas figuras se sustentam no espaço da imaginação e da intelecção, mas também da memória, da percepção e da ficção, instituindo-se como imagens da criação.

Ao agrupar os retratos, colocando-os lado a lado em um mesmo campo pictórico, a autora faz com que a tela se torne o cenário e a seqüência temporal e narrativa de um filme, cujo enredo vai sendo formatado pelo olhar sensível e pela imaginação do interlocutor. E é nesse sentido que a mesma enfatiza que sua pintura não remete a nenhum aspecto preciso do mundo, mas propõe a reflexão sobre um mundo do qual temos consciência e fazemos parte.

O jovem artista Filipe Borba elaborou especialmente para esta mostra um espaço/instalação em forma de cubo revestido de xerocópias que reproduzem desenhos de sua autoria, contando com o auxílio de dois aprendizes, alunos de um curso livre de desenho e grafite ministrado pelo artista. Nessa instalação, o artista reafirma a recorrência ao desenho sobre papel, como processo expressivo ainda embrionário, mas que tem forte chance de amadurecer e dar bons frutos, a contar pelo posicionamento reflexivo e crítico revelado pelo jovem. 

Se a forma cúbica remete imediatamente à forma ancestral de casa, as formulações e intersecções gráficas engendram uma multidão ou uma massa compacta de corpos lineares, que penetra, invade e ocupa inteiramente as paredes internas e externas do cubo. A estrutura/corpo das figuras humanas é formatada por linhas tão seguras quanto incertas em sua trajetória e configuração visual. Isso dá às formas uma aparência fantasmática, seja pelo esvaziamento dos corpos de seus volumes e detalhamento, seja por se projetarem e se esbaterem umas contra as outras, por todo o campo do papel.

Deslizam ou flutuam no espaço branco, sem uma ordenação precisa ou claramente definida, razão por que a instalação foi denominada por seu autor de Casa das vertigens. Mas o título da obra também diz respeito ao encadeamento, repetição e formulação gráfica e visual dos corpos se comprimindo uns contra os outros, como vermes.

Ao multiplicar exaustivamente, em uma máquina copiadora, as imagens por ele produzidas, o jovem artista subverte a idéia de obra única que caracteriza o desenho. Interfere em alguns desses desenhos com canetas coloridas, criando uma espécie de ruído ou estranhamento, que subverte a linearidade e o caráter planar das formas. Essas cópias são depois coladas sobre superfícies lisas de paredes, tetos e pisos, criando um espaço sufocante ou de opressão, que não deixa de ter alguma imbricação política. 

O tema predominante nos desenhos de Borba é a figura humana em grupo, elaborada com um traço negro, em um gesto rápido, espontâneo e sintético, de maneira a preencher quase inteiramente o campo ou suporte. Se vistas isoladamente, essas imagens apresentam curiosas singularidades e diferenças na sua configuração corporal e na sua movimentação vertiginosa, como se cada uma tentasse encontrar a posição mais confortável para o seu esqueleto de formas alongadas e lânguidas. 

Entretanto, a intenção do artista ao colar e justapor essas estruturas corporais é gerar um processo em que todas as diferenças se apaguem ou se tornem imperceptíveis. Assim, as figuras passam a ter a mesma corporeidade, o mesmo peso e a mesma concepção conceitual, fazendo levitar esses corpos desajeitados e estranhos ou fazendo-os rastejar como vermes sobre a superfície alva do papel. 

Embora não se relacionem entre si, nem pratiquem nenhuma ação específica, vistas apressadamente, parecem protagonizar uma cena de sedução e erotismo. Ao colar as imagens xerográficas sobre as paredes internas e externas de uma estrutura cúbica de madeira, que remete à idéia de casa, o artista embaralha e nivela as figuras. Produz uma acumulação de signos que mantém relação com o grafite ou com a fabulação visual das histórias em quadrinhos, mas também podem ser entendidas como representações físicas e mentais que o homem construiu de si mesmo, em tempos imemoriáveis. 

A casa é para o homem o refúgio seguro, o útero-ninho, o lugar da privacidade e da intimidade. Ao penetrar nesse espaço-instalação, o espectador torna-se uma espécie de voyeur ou de testemunha das cenas íntimas que vão sendo desveladas por ele em meio àquele cenário repleto de ícones figurais idênticos, que mais desorientam do que orientam.

O fotógrafo profissional Tom Boechat, embora ainda bastante jovem, já percorreu o mundo. Estudou e especializou-se em instituições norte-americanas, como o International Center of Photography (ICP), na cidade de Nova Iorque, onde produziu também ensaios sobre músicos que se apresentam nas estações do metrô e sobre profissionais negros que vivem e se apresentam no bairro do Harlen. Mas suas andanças e atuação profissional não pararam por aí. Registrou aspectos inusitados do cotidiano e da paisagem de metrópoles, como Nova Iorque, Tóquio, Rio de Janeiro e São Paulo, flagrando em especial a arquitetura, publicados em revistas especializadas, brasileiras e estrangeiras.

Com uma percepção treinada e uma sensibilidade aguçada, Boechat produz imagens que redimensionam os conceitos de encantamento e de estranhamento. Por meio de cortes, enquadramentos e outros recursos, o fotógrafo subverte ou desmonta a ordem, o caos do tráfego e o burburinho cotidiano das cidades, eliminando, como em um passe de mágica, os veículos e o próprio homem dos espaços urbanos. A aparente tranqüilidade das ruas acaba por gerar, no entanto, um espaço postiço, inverossímil e estranho. 

Confirmando a premissa de Bachelard em sua obra O ar e os sonhos (BACHELARD, 1990, p. 49) de que a “contemplação é essencialmente um poder criador”, que gera a vontade de alterar “o movimento daquilo que contemplamos”, Boechat lança um olhar poético sobre imagens de cidades e paisagens. Interfere na ordem e na configuração visual do espaço das ruas e do entorno dos edifícios, negando o caráter documental e fidedigno da fotografia. Essa outra realidade por ele construída lhe permite desmontar o conceito de realidade e de veracidade fotográfica, afirmando que o engendrar de cidades utópicas não se constitui em um mero processo de idealização, mas de invenção e de criação artística. E é por meio desse processo inventivo que se torna possível estabelecer uma nova ordem social, espacial e temporal. Assim, como qualquer outro meio e linguagem artística, as imagens fotográficas geradas por Boechat produzem uma falsa aparência de tranqüilidade e de vazio, não simplesmente em razão de seu autor expulsar das ruas os veículos e o próprio homem, mas em razão do seu caráter insólito e da surpresa que instauram.

O fotógrafo reconstrói o espaço da rua ou de outros espaços e aspectos da cidade, como banheiros públicos, residências e hotéis que, por diferentes razões, foram abandonados. Por meio de um exímio virtuosismo técnico e de um olhar perspicaz, põe o espectador frente a frente com uma memória fantasmagórica, que parece se desvelar de maneira fragmentária, como as lembranças ou a própria idéia de descontinuidade do tempo. Esse tempo/memória mantém-se impregnado na deterioração dos ambientes, no aspecto démodé e estranho dos móveis e objetos, na decolagem dos papéis de parede. Por meio de cortes e sombras projetadas, articula um processo de ascese que reafirma sua não-neutralidade diante da realidade e ao criar cenas inusitadas que parecem remeter a um mundo fantástico ou paradoxal. Boechat põe em confronto e em tensão as noções de normalidade e estranhamento, pormenor e descomunal, acúmulo e vazio, passado e presente, dualidades essas que para Omar Calabrese são recorrentes na arte do nosso tempo. 

As fotografias de lugares públicos e privados, de paisagens urbanas e arquitetônicas captadas por Boechat inserem-se, portanto, em um espaço fronteiriço entre realidade e ficção (ou seria da dupla representação?). Agenciam um conceito de realidade que parece ser verdadeiro, mas que foi transfigurado pela ótica inventiva de seu autor. 

Se tais imagens mantêm impregnado o segredo de sua gênese, nelas é possível desvelar a intenção do fotógrafo de articular um jogo dúbio e inverossímil entre opacidade e translucidez, que assegura à luz e à cor atingirem sua potencialidade máxima. 

As imagens construídas por Boechat inscrevem-se na tradição da fotografia objetivista com foco nos ambientes e espaços arquitetônicos que têm presença destacada na arte atual. Revelam a preocupação do autor com a realidade do mundo, sobre o qual interfere por meio de especulações que são de natureza tanto retiniana quanto poética.

Embora geradas por uma mesma intensidade criativa e sensível, ainda assim é possível detectar certa frieza ou alguma secura nas imagens elaboradas pelo fotógrafo para atender às solicitações do mercado institucional, editorial e publicitário, o que as diferencia daquelas produzidas com total liberdade criativa. 

Com uma percepção aguçada e uma mão treinada, Álvaro Abreu faz brotar de uma simples lasca de bambu objetos que guardam entre si semelhança, mas também diferenças abissais, se comparados e analisados atenta e minuciosamente.

Recorre para isso a um ferramental elementar ou nada sofisticado (faca, goiva, lixa) com o qual vai desbastando o que lhe parece exceder ou não fazer parte da configuração do objeto concebido e formatado, a priori, pela imaginação, vontade formadora e conhecimento do artista. Isso significa que a forma se configura e se projeta na mente, antes mesmo de o objeto começar a ser entalhado pelo seu autor, processo que torna dispensável a elaboração de um esboço prévio. A forma do objeto resulta do ajuste perfeito entre a percepção, o conhecimento e o diálogo que estabelece com a lasca de madeira. 

Se a ação repetitiva e a insistência em especular sobre objetos que têm uma mesma configuração básica ou seminal não deixa de remeter à busca da forma perfeita ou essencial, o trabalho diário na produção de objetos de madeira é também para Álvaro Abreu um projeto de vida. Assim, onde quer que ele esteja, ou nas caminhadas matinais em uma pequena praia na Ilha do Boi, não se desvia da atividade criativa, recorrendo apenas a uma faca tosca e um pedaço de bambu. É por meio dele que o artista procura estabelecer maior conexão e equilíbrio entre corpo e espírito, processo que mantém sintonia com a filosofia oriental. 

Para os chineses, o bambu é o símbolo da abundância, da harmonia, do equilíbrio, da elegância, em razão da singularidade e da sutileza do formato e da alternância das folhas, delicadeza dos ramos e movimento deslizante e ascendente do caule/tronco da gramínea. Com a madeira desse vegetal, produzem muitas coisas, ou quase tudo: do alimento à confecção de papel, de instrumentos musicais a objetos e construções utilitários diversos: móveis, brinquedos, cercas, casas, para não citar outras apropriações.

Nessa cultura milenar, desenhar os ramos e as hastes do bambu, recorrendo apenas a uma pena e tinta nanquim, ou por meio da xilogravura, constitui-se em um exercício que propicia o encontro do homem com sua força espiritual, o Tao. A persistência e a continuidade levarão à criação das formas e do movimento do arbusto, de maneira a superar a própria idéia de representação mimética, suplantando a aparência visual e corporeidade orgânica das formas. É nesse estágio que alguém será considerado artista. 

Álvaro Abreu denomina os objetos por ele criados ao longo dos últimos quinze anos simplesmente de colheres, remetendo imediatamente a objetos utilitários. Se pensarmos na colher apenas como um objeto criado por nossos ancestrais para facilitar a ingestão e o aproveitamento dos alimentos necessários à sobrevivência e à vida, estaremos salientando apenas a sua função, sem especular a beleza e a harmonia de seu design, nem a sua concepção criativa. Ao conceber cada novo objeto, não interessa ao artista saber como ele poderá ser usado por um dado usuário, mas aspira que cada novo objeto criado mantenha uma característica inaugural e única. Esse intento será atingido se, na configuração interna e externa da forma, desvelar-se uma unicidade e uma harmonia jamais obtidas antes. Ao se preocupar unicamente com o equilíbrio e a perfeição da forma/corpo do objeto e não com a sua função, pode-se afirmar que o escultor cria objetos artísticos e não objetos utilitários.

Nesse sentido, as pequenas esculturas produzidas por Álvaro Abreu mantêm impregnado em cada corte e veio da madeira o sonho de estabelecer uma fusão harmoniosa ente arte e vida, que faz com que o pensamento criativo prevaleça sobre as preocupações funcionais e econômicas acerca do objeto gerado.

Ainda na infância, Gustavo Vilar descobriu, observando o trabalho do pai escultor, que a ação transfiguradora do fogo tornava inócua a resistência, a insubordinação e a dureza dos metais. Mas foi na juventude que decidiu fazer da criação artesanal de objetos singulares de cutelaria um laboratório experimental e criativo e atividade profissional. 

Experiente no traquejo de lidar com os materiais e o fogo na oficina de trabalho do pai, de quem foi assistente por vários anos, o jovem iria se interessar e desenvolver um gosto pessoal pela cutelaria. Por sentir necessidade de aperfeiçoar seu processo de trabalho e melhorar seu desempenho produtivo, o jovem artista foi tomando consciência de que não lhe bastariam os conhecimentos adquiridos inicialmente por meio de leituras e experimentações não sistemáticas. Fez cursos e estágios com expertises de em uma arte sem grande tradição no nosso país e que parece fadada a desaparecer.

Em curto espaço de tempo, desenvolveu um processo peculiar de trabalho e uma eficiência notória na transformação da matéria bruta, domada pela incandescência do fogo e pela ação transformadora do martelo a bater na bigorna. A ele, procurou associar um conceito próprio de criação e de eficiência das lâminas cortantes de suas facas, punhais, ou de outros objetos, bem como a pesquisa e a junção de materiais empregados no acabamento de cada peça.

Gustavo Vilar situa sua linha de produção em uma espécie de confluência entre harmonia, beleza e eficiência no desempenho dos objetos. Entretanto, a concepção formal e criativa dos mesmos potencializa as qualidades estéticas do objeto e parece enfraquecer ou escamotear o seu desígnio funcional. 

O processo de criação, de construção e de acabamento dos objetos é inteiramente concebido e executado pelo artista. Como qualquer outro processo criativo, o ato de dar forma e de inventar procedimentos e trajetórias singulares na formatação de cada objeto tem a intenção de gerar obras raras como jóias, isto é, de associar ousadia e inovação na criação de peças únicas. Inventa soluções que ultrapassam o conceito de eficiência e da resistência da lâmina, agregando e materializando em cada objeto idéias, sentimentos e sonhos. Estes se desvelam na harmonia das formas, nas sutilezas visuais da decoração das lâminas e cabos dos objetos, na pesquisa e perfeita integração de materiais de diferentes naturezas e calibres.

Assim, um dos procedimentos mais originais utilizados pelo artista pode ser notado em um processo de impressão de elementos visuais muito tênues e delicados. Essas texturas/pele cobrem a superfície espelhada das lâminas como escamas ou relevos, o que agrega ao objeto preciosismo, sofisticação e originalidade inventiva.

Em cada objeto de sua autoria, o jovem estabelece um processo híbrido de integração de materiais de diferentes naturezas, que vão sendo ajustados e lapidados tanto na elaboração das lâminas, como nos cabos e bainhas que cria especialmente para cada peça. Enquanto os primeiros podem ser de madeira, osso, marfim, e receber detalhes em ouro ou outros metais preciosos, idêntico esmero e originalidade merece a concepção e a tessitura artesanal das bainhas em couro, que dão um toque especial e agregam valor e significado ao objeto. 

Gustavo Vilar pertence a uma geração de designers emergentes no final da década de 1990 que se caracterizou pela vontade de inserir seu trabalho em um processo comercial em rede, angariando assim rápido reconhecimento nacional e internacional.

A criação de esculturas e instalações que justapõem um encadeamento de sons e ritmos, recorrendo a uma mistura de materiais ordinários e sofisticados, constitui o processo de trabalho criativo do capixaba, radicado no Rio de Janeiro, Paulo Vivacqua.

Inquieto e ousado, este músico de formação erudita passou a desenvolver pesquisas experimentais no início desta década procurando criar uma espécie de música provisória, explorando as potencialidades sonoras de objetos de diferentes naipes e especificidades. Percebendo que na área musical esse gênero de investigação se institui de maneira praticamente marginal ou subterrânea, por não ter grande aceitação no meio, a não ser por pequeno número de interessados, passou a desenvolver um outro processo de comunicação sonoro/visual e de engajamento do espectador. 

Elabora, a partir de então, esculturas e ambientes sonoros, que hibridizam artes plásticas, som, luz, ritmo, e são tanto emissores quanto acolhedores das partituras e narrativas imaginadas pelo artista. Formatados com uma parafernália de materiais industriais – placas de vidro ou de acrílico, fios elétricos, microfones, alto-falantes, televisores, gravadores –, o intuito do jovem em alguns de seus trabalhos é criar um ambiente viso-sonoro, que permita ao espectador interagir e fazer suas próprias descobertas. Este poderá perceber ou formular hipóteses de como o artista apreendeu o ar emitido por objetos, transformando-o em uma seqüência rítmica que é emitida e amplificada por alto-falantes, além de acompanhar e fruir a geografia secreta de emissão de sons de diferentes timbres, alturas e intensidades. 

Por meio da criação de objetos variados e ambientes sonoros, o artista inventa maneiras inusitadas de amplificar e tornar audíveis estruturas ou narrativas sonoras, criadas e pensadas de maneira diferenciada a cada nova instalação. As infindáveis redes de fios serpeando no espaço evocam, por si só, desenhos e frases. Com placas de vidro ou acrílico, pequenos focos luminosos, alto-falantes e microfones, Paulo Vivacqua interfere no espaço e na percepção auditiva e visual do interlocutor com suas inquietantes partituras, escrituras musicais e ideogramas rítmicos. As fontes sonoras por ele utilizadas podem estar inteiramente expostas, enterradas na areia, ou posicionadas em diferentes locais no interior de uma câmara escura ou reveladas pouco a pouco por focos de luz que se alternam em diferentes pontos do ambiente. A alternância abrupta de luzes e variados timbres sonoros e estruturas rítmicas em um dado espaço tem o propósito de desarranjar a previsibilidade da narrativa e interagir com o espectador.

Esses ambientes sonoros tanto remetem a situações imaginárias, como a locais específicos da natureza: desertos, lagos, florestas, recorrendo tanto a equipamentos de última geração como a materiais naturais ou industrializados (areia, pedras, grama, plantas, vidro, canos de PVC). O público é instigado a interagir com esse universo visual e sonoro, não apenas convocando a audição e a visão, mas estabelecendo uma relação vivencial e sinestésica com esse espaço/lugar: tocando, caminhando, percebendo, estabelecendo conexões entre as estruturas e substratos sonoros e os efeitos luminosos e visuais, que se imbricam uns nos outros, para ressurgir de maneira abrupta ou docemente de diferentes fontes, contornos, meandros e labirintos desse ambiente inaugural.

É nesse trânsito/vivência entre espectador e obra que ambos se transformam, modificam seu comportamento perceptivo e se re-significam. Ao penetrar nesse espaço de descoberta, assimilação e percepção sensível, uma verdadeira rede de relações multissensoriais, o interlocutor se reconhece como ser participativo e ativo. Os estímulos visuais e sonoros criados pelo artista ativam a imaginação, a percepção, a curiosidade, mas também a reflexão e a descoberta, encurtando a distância e promovendo a interação entre arte e vida.

Para o artista, a conexão entre o objeto e o som que dele emana é tanto musical quanto lingüística, razão por que investe cada vez mais em maneiras inusitadas de apresentá-los, propondo ao interlocutor que interaja, atue e redimensione seus níveis de percepção e de significação. Por meio de sua atitude criativa e de suas escrituras viso-sonoras, Paulo Vivacqua parece reafirmar a máxima de Hélio Oiticica: “Tudo o que faço é música”. 

Completando a lista de participantes da exposição 1+7, está o grupo de jovens denominado Cine Falcatrua, que em apenas cinco anos de existência angariou projeção nacional. Constituído por jovens estudantes dos cursos de Comunicação Social e de Artes Plásticas da UFES, interessados em discutir e propor maneiras underground de ironizar, enfrentar e pôr em xeque o poderoso sistema de exibição cinematográfica, surgiu em 2004, como Projeto de Extensão Universitária, sob a coordenação de um professor, que orientava os debates e discutia com o grupo as ações por ele propostas.

O início das atividades do Cine Falcatrua deu-se no próprio campus universitário, em sessões cinematográficas gratuitas para a exibição de filmes baixados da internet. Recorrendo a equipamento digital, o grupo exibia obras raras ou à margem do circuito comercial, além de seriados de tevê, curtas metragens e vídeos. Também antecipou a apresentação de produções que sequer haviam entrado em cartaz.

A receptividade da platéia estimulou os jovens a ampliar as sessões para o público externo à Universidade, por meio do que denominaram de cineclube móvel. A exibição de filmes e de vídeos, seguida de oficinas de produção e discussão, chegava aos bairros periféricos e até aos municípios da Grande Vitória e do interior. A proposta do grupo tem uma forte conotação política e utópica: assegurar o acesso à cultura e à informação em localidades onde isso injustamente não ocorre.

Essa atitude política logo ganhava as páginas dos principais jornais nacionais. Mas foi uma matéria publicada na Folha de S. Paulo o estopim de uma longa batalha judicial, movida por duas grandes produtoras internacionais contra a UFES, acusada de pirataria e de “concorrência desleal”. 

O episódio tomou proporções nacionais, e o grupo recebeu o apoio de cineclubes, intelectuais, cineastas, produtores independentes, ampliando assim o debate e a reflexão. Esses últimos passaram a enviar para o Cine Falcatrua suas próprias produções, que garantiram a manutenção das ações e a sobrevivência do grupo. Selecionado para participar do Projeto Rumos, do Instituto Cultural Itaú de São Paulo, o Cine Falcatrua pautou sua participação em uma nova proposta: o festival Corta Curtas. Assumiram um compromisso com os autores dos filmes recebidos de que suas produções não passariam por pré-seleção e que toda a produção recebida seria mostrada no evento Paradoxos Brasil, promovido pelo Instituto Cultural Itaú, mas não necessariamente na íntegra. Receberam uma quantidade extraordinária de vídeos, de diferentes níveis de qualidade.

O grupo submeteu essa produção a cortes e colagens, que interferiam ou modificavam as narrativas, ação que reordenava a dimensão das suas propostas. A idéia era discutir e ironizar a questão da autoria, como forma de poder, mas que segundo o grupo não procedia, pois quem o exerce verdadeiramente é o operador das máquinas, após o advento das mídias digitais e da internet. A proposta não foi bem aceita e compreendida por alguns, que iriam impedir a exibição, atitude que confirmava, ironicamente, que as noções “de autonomia artística, direitos autorais, propriedade intelectual, ainda estruturam o sistema de arte” (JAREMTCHUK, 2007, p. 95).

Apesar de ter sofrido algumas modificações nos componentes originais, pois os que concluem os respectivos cursos universitários acabam se desligando do grupo, o mesmo ideal sustenta e mantém unidos os novos integrantes. Sem perder o grau de ousadia e irreverência, o Cine Falcatrua tem procurado substituir as soluções caseiras e improvisadas por equipamentos e tecnologias de última geração. Isso faculta ao grupo desenvolver propostas inovadoras, para serem apresentadas em ambientes e espaços não institucionais. 

O grupo Cine Falcatrua conta atualmente com os seguintes integrantes: Fernanda Neves, Fabrício Noronha, Gabriel Menotti e Rafael Trindade, que preservam a idéia inicial de desenvolver propostas criativas de natureza coletiva, pautadas na tentativa de perturbar ou transgredir a ordem funcional do sistema de produção audiovisual.

Para a exposição 1+7, o grupo desenvolveu uma videoinstalação original, a partir de imagens apropriadas, pontas. Construíram uma cena, um cenário e um tempo imaginários, que se desenrolam em um espaço virtual ou em um não-lugar, composto por um tapete, alguns objetos e um músico tocando um instrumento musical. Essa produção será projetada com o emprego de scans e tecnologias digitais, simultaneamente, nas quatro faces laterais de um espaço cúbico, isto é, em múltiplos écrans. Isso torna possível intercalar e alternar a projeção da cena visual, engendrando assim uma narrativa não linear e uma performance visual que desestabiliza o conceito de previsibilidade. 

A intenção do grupo é discutir as idéias de autonomia, de autoria e de poder na era da internet e das tecnologias digitais que possibilitam infinitas maneiras de interagir, colar, sobrepor, borrar e seqüestrar imagens.

Completa-se assim a gama de processos visuais e sonoros diversificados e sintaxes artísticas engendradas pelos respectivos autores que integram a mostra 1+7. Enquanto uns subvertem ou redimensionam os valores estéticos e os conceitos de obra e de artista, outros marcam uma nova posição definida ao instigar ou ironizar a ordem do mundo ou suas relações de poder.

Almerinda Lopes 

Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. 1. Ed. Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
CAUQUELIN, Anne. Fréquenter les incorporels: contribution à une théorie de l’art contemporain. Paris: PUF, 2006.
JAREMTCHUK, Dária. Ações políticas na arte contemporânea brasileira. Concinitas – revista do Instituto de Artes da UERJ, ano 8, v. 1, n. 10, p. 87-95, jul. 2007.

Publicação

1 + 7 – Arte Contemporânea no Espírito Santo 
Dez anos do Museu Vale

O Museu Vale apresenta a mostra coletiva “1 + 7 – Arte Contemporânea no Espírito Santo”, em comemoração aos seus 10 anos de atividade. Nesse período, o Museu realizou exposições, dentre muitas outras, com obras de importantes artistas brasileiros, como Cildo Meireles, Tunga, Ernesto Neto, Carlos Vergara, Iole de Freitas, Hilal Sami Hilal e Eduardo Sued. “1 + 7 – Arte Contemporânea no Espírito Santo” será inaugurada dia 1º de novembro, sábado, para convidados, e no dia seguinte para o público. 

Coerente com a ousadia que marca sua programação desde a inauguração, em outubro de 1998, que inseriu a instituição no roteiro artístico nacional e internacional, o Museu Vale mostra com “1 + 7 – Arte Contemporânea no Espírito Santo”, um recorte da produção capixaba, de várias gerações e suportes, com curadoria de Almerinda Lopes, da Universidade Federal do Espírito Santo e Ronaldo Barbosa, diretor do Museu Vale.

A mostra presta uma especial homenagem ao artista Dionísio Del Santo (1925-1999), que “será uma espécie de figura interativa da exposição”, como explica a curadora. Os artistas e designers contemporâneos que estão na exposição “recodificam e atualizam o pensamento concretista deste capixaba que defendeu o rompimento das fronteiras entre arte e vida”, diz Almerinda Lopes. “A escolha privilegiou um leque diferenciado de linguagens contemporâneas, cujas ações, materiais e suportes se caracterizam pelo seu caráter inovador, pela coerência e pela ousadia criativa”, afirma Almerinda Lopes.

Os artistas Regina Chulam, Filipe Borba, Tom Boechat, Paulo Vivacqua e grupo Cine Falcatrua apresentam trajetórias diversificadas, explorando, além da pintura, outros meios como fotografia, desenho, videoinstalação e instalação sonora. Será ainda dedicado um espaço especial a dois designers contemporâneos, capixabas, que têm um destacado trabalho: Álvaro Abreu e Gustavo Vilar. 

Artistas e obras
Paulo Vivacqua mostra a instalação sonora “Lug(AR)”, em que o ar, transformado em som, toma diferentes formas partindo de diferentes materiais – cilindros de metal, placas de vidro e metal, desde estados simples até formações escultóricas. O jovem artista, com formação musical, vem produzindo objetos cinéticos e instalações com luz e som, nas quais associa materiais triviais a uma sofisticada tecnologia. Em 2006, participou do Rumos Itaú Cultural.

Cine Falcatrua, um coletivo de artistas formado por jovens ex-alunos do curso de Comunicação Social e de Artes Plásticas da UFES, criou a obra interativa “4-Track Super 8”. Quatro projetores Super 8 vão exibir na mesma tela filmes sincronizados de três minutos, em loop, ou seja, de maneira contínua. As imagens projetadas se superpõem em camadas, mostrando a composição completa. O público poderá interagir, desligando um ou mais projetores, explorando as possíveis combinações de imagem. Há quatro anos o grupo faz cinema por processos artesanais ou rudimentares. “4-Track Super 8” faz referência aos gravadores de áudio de quatro pistas que impulsionaram a indústria fonográfica na década de 1950 e, de certa forma, definiram uma boa parcela da estética e da linguagem da música contemporânea.

O artista Filipe Borba criou para a mostra a instalação “Casa das Vertigens”, em que cobre paredes, teto, chão, móveis da estrutura de madeira com fotocópias de seus desenhos. Com 24 anos, aluno do curso de Artes Plásticas da UFES, ele desenha exaustivamente figuras humanas desorientadas ou massificadas, que replica por meio de fotocópias, em uma clara herança pop. Participam da montagem da instalação três adolescentes do Programa de Arte Educação, criado pelo Museu Vale. Com isso, o artista pretende ressaltar a discussão sobre autoria, presente em trabalhos que envolvem reprodução. 

O fotógrafo Tom Boechat estudou e atuou em duas grandes metrópoles internacionais: Nova Iorque e Tóquio, capturando instantâneos inusitados de ruas e arquitetura. “Fachadas de lojas e prédios antigos são captados por um olhar frontal, onde o tempo exercitou seu trabalho de arqueologia”, comenta Ronaldo Barbosa.

A pintora Regina Chulam mostrará dez trabalhos, no que chama de “regresso às origens”, pois retornou recentemente ao Espírito Santo, depois de estudar em Londres, e viver e trabalhar em Lisboa durante 30 anos. Ela associa uma série de temas desenvolvidos ao longo de sua trajetória, em um processo “de inversões e repetições”. 

A mostra destaca ainda a refinada produção de design do Espírito Santo. Álvaro Abreu vai expor cerca de quatro mil colheres, espátulas, conchas e garfos de bambu. Este engenheiro de produção começou a pesquisar e entalhar o bambu há 14 anos, e parte de sua produção de colheres foi incorporada ao acervo permanente do Die Neue Sammlung, um dos quatro museus da Pinakothek der Moderne, em Munique, Alemanha. Seu trabalho é inteiramente manual, e feito apenas com o auxílio de ferramentas muito simples e, muitas vezes, improvisadas.

O jovem Gustavo Vilar mostra a série “A Ferro e a Fogo”, com facas, canivetes e machados finamente forjados, em um trabalho autoral surpreendente, próximo à joalheria. Há dez anos desenvolve essa pesquisa, movido pela “paixão pela arte de fazer lâminas, e pelo inexplicável fascínio pelo fogo e por esses objetos desde a infância”.

Dionísio Del Santo – Pequena Biografia, por Almerinda Lopes

Dionísio Del Santo nasceu em 1925, em Colatina, norte do Espírito Santo, e faleceu em Vitória, em 1999, logo após a inauguração do Museu Vale. Filho de humildes agricultores de origem italiana, revelou vocação para a arte na adolescência, começando a produzir, como autodidata, os primeiros trabalhos de pintura. A falta de perspectivas para se aperfeiçoar, para expor e comercializar sua produção artística no Espírito Santo levou Del Santo a se transferir para o Rio de Janeiro em 1947. O jovem capixaba integrou-se rapidamente ao ambiente artístico carioca, investindo na construção de uma gramática modernista de matriz construtiva. Ali desenvolveu uma carreira profissional que a crítica especializada considerou como uma das mais perseverantes e coerentes, dentre os artistas de sua geração. Embora não tenha se vinculado ao grupo neoconcretista, Dionísio Del Santo formulou, até o final da vida, uma linguagem artística sintonizada com aquela vertente, submetendo-a a um constante processo de revisão e reordenação formal e pictórica. A utopia concretista de estetização da sociedade como um todo defendia a criação de objetos artísticos destinados não à contemplação individual da elite, mas voltados para uma fruição coletiva, contribuindo, dessa maneira, para formar o novo homem e uma sociedade mais equilibrada e justa.

Dionísio Del Santo ajudou a difundir essas idéias junto aos jovens, como professor do ateliê do Museu de Arte Moderna e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, bem como entre os alunos e professores da Universidade Federal do Espírito Santo. Ao expor suas obras em Vitória e ministrar cursos de gravura no Centro de Artes da UFES, entre as décadas de 1960 e 1990, o artista contribuía, ainda, para a atualização das linguagens artísticas dos conterrâneos. O artista realizou exposição na inauguração do Museu de Arte do Espírito Santo, em dezembro de 1998, e se empenhou pessoalmente na seleção dos trabalhos e na montagem da exposição, quando se sentiu mal e veio a falecer, dias depois, em Vitória.

Serviço: 1 + 7 – Arte Contemporânea no Espírito Santo
Museu Vale, Vila Velha, Espírito Santo
Abertura: 1 de novembro de 2008, às 11h (para convidados)
Visitação pública: 2 de novembro de 2008 a 15 de fevereiro de 2009
Curadoria: Almerinda Lopes e Ronaldo Barbosa
Realização: Museu Vale 
Patrocínio: Vale
Apoio: Lei Federal de Incentivo à Cultura
Produção: ARTVIVA Produção Cultural
De terça a domingo, das 10h às 18h
Sextas, das 12h às 20h
Entrada franca

Endereço: Antiga Estação Pedro Nolasco, s/n
Argolas – Vila Velha – ES
29114-920
Telefone: 27.3333.2484
Vagão-Café e Restaurante (anexo ao Museu Vale)
Terça a domingo – almoço
Quinta, sexta e sábado – jantar (música ao vivo às sextas e sábados)
Telefone: 27.3326.8190 
www.museuvale.com