Há algo em trânsito na arte contemporânea capixaba. Em resposta ao movimento dinâmico do tempo, as múltiplas linguagens artísticas, sensibilidades e modos de fazer funcionam como um lembrete de que a história não é um território imóvel, mas sim um campo aberto ao questionamento e à criação de novas perspectivas e olhares, um espelho da complexidade do tempo e da arte, em constante reinvenção.
Com curadoria de Nicolas Soares e Clara Pignaton, a exposição Transitar o Tempo, realizada pelo Museu Vale, em seu momento extramuros, reúne 30 artistas capixabas e segue como uma travessia entre gerações de criadores que carregam consigo não só suas próprias experiências, mas também os contextos sociais, políticos e culturais que os moldam. Ocupando a Casa Porto das Artes Plásticas, no Espírito Santo, em parceria com a Prefeitura de Vitória, por meio da Secretaria de Cultura, a mostra é um convite ao encontro dos tempos e à celebração da produção capixaba.
Transitar o Tempo reflete o compromisso do Museu Vale em expandir suas atividades extramuros, promovendo acesso à arte, cultura e educação, ampliando seu alcance através da circulação por novos espaços, destacando a importância da preservação da memória cultural do Espírito Santo.
As ações do Museu se conectam à atuação do Instituto Cultural Vale, que, desde 2020, já realizou, articulou ou patrocinou mais de 800 iniciativas culturais no Brasil. São iniciativas plurais com um propósito singular: criar oportunidade de transformação da vida por meio da cultura.
Assim, esperamos que, ao vivenciar a exposição, aberta para visitação de dezembro de 2024 a março de 2025, cada visitante possa caminhar por uma jornada que pulsa a arte e nos aproxima do encontro entre passado, presente e futuro.
O tempo, “esse compositor de destinos”, que já foi medido pelo sol, pelas fases da lua, pela ampulheta, pelos relógios e outros instrumentos, no final das contas, faz templo é no coração das pessoas. São elas, protagonistas históricas, que participam da poética social e contribuem para sua construção.
Essa poética, fluida e viva, que reverencia o que foi e perspectiva o que pode vir a ser; que cultiva a tradição e aposta na transgressão criadora e inventiva, é o que interessa à exposição Transitar o Tempo. Um deslocamento entre o dito e o feito, um movimento que reúne 30 artistas capixabas e suas percepções estéticas acerca do tema.
É com imenso orgulho que esta Casa, que é o Porto das Artes Plásticas, abre-se para “atracar” e, mais que isso, abrigar a história e a memória cultural do Espírito Santo traduzidas nesta mostra coletiva contemporânea. A Prefeitura de Vitória, por meio da Secretaria de Cultura, celebra a parceria com o Museu Vale e reafirma o seu compromisso de manter as portas abertas para as Artes. A casa é sua!
Nas encruzilhadas da contemporaneidade, uma pedra foi jogada hoje e sua ressonância se expande: ontem um som ecoou no futuro. Entre as inúmeras imagens do tempo que a humanidade criou para se orientar, estamos comumente diante daquelas que encaram o passado como imutável e coeso para ofertar noções de estabilidade diante de futuros incertos. No entanto, a relação entre tempo, espaço e causação não é necessariamente uma movimentação temporal linear e sucessiva, mas provoca um exercício de tecer, entre discursos, práticas e modos de fazer de outrora, um tempo-agora.
O verbo transitar não indica seu início, nem meio ou fim, nem mesmo finalidade e intencionalidade de uma ação determinada. Ter existido antes, no papel da cultura e na organização de seus feitos, até mesmo no passado, pode ser especular o futuro não-nascido; refletindo o que se precede, como também prospectando rupturas possíveis. Ao nos voltarmos para a produção artística de antes, estamos desprovidos desses olhos de antes. Considerar que fazemos parte de processos históricos nos possibilita estar presentes e reorganizar uma antiga imagem sobre os contextos sociopolíticos e culturais em que vivemos.
Transitar o Tempo ensaia aproximações e contrastes geracionais entre artistas de modo a provocar uma tensão na ideia de um recorte geográfico unificado. A partir desses encontros e entrelaçamentos, damos atenção ao espaço intermediário entre os trabalhos, isto é, ao que os conecta e ao movimento de um ao outro, não para realizar uma síntese ou para traçar uma linha de continuidade, mas para expor os conflitos de uma cultura compartilhada e dar espaço a outras conexões. Ainda que os trabalhos partam de lugares de imaginação distintos, em comum afirmam dinâmicas críticas aos projetos de modernização e suas violências.
Do tempo de perceber a exigência do presente, faz-se história. Assim, o antes e o depois se volteiam, não há cesura entre o passado e futuro pelo presente, ambos o habitam. A imagem do passado ganha nova perspectiva ao se fazer uma experiência única no presente, e, ainda que vivendo no lugar recôndito de sua história própria, ela mesma comunica para o agora novas interpretações. Essa matéria histórica sobrevive e reaparece em gestos e corporeidades, no saber-fazer, como criação.
Linguagens, técnicas e poéticas elaboradas na arte do agora reivindicam a existência e o movimento sempre cambiante de se firmar. Realinhamos o passado quanto mais nos movemos ao futuro; é no próprio movimento que parece estar o abrigo do tempo.
ANTONIO ROSA
BÁRBARA CARNIELLI
BRUNO CABÚS
BRUNO ZORZAL
CHARLENE BICALHO
DILMA GÓES
DONA ANTÔNIA
AUTOR DESCONHECIDO
EUZIRA NEVES
FREDONE FONE
GEOVANNI LIMA
GRUPO BARRA DE RENDA
KIKA CARVALHO
LILIANA SANCHES
LUCIANO FEIJÃO
MARCOS MARTINS
MARCUS VINICIUS
MATHEUSA MOREIRA
MEURI RIBEIRO
NATAN DIAS
NATANAEL SOUZA
PAULO FERNANDES
GESSÉ PAIXÃO
YURIÊ PERAZZINI
RENATO REN
REUTO FERNANDES
RONALDO MATEUS LIMA
ROSANA PASTE
RUBIANE MAIA
YURIE YAGINUMA & JESSICA SAMPAIO
“O tempo não gosta de nada que é feito sem ele”,aprendi. Não consigo conceber a existência longe desse ensinamento. Pensar e reagir frente às adversidades das nossas existências, tendo o legado das criações estéticas, políticas e poéticas em confluência, indissociavelmente das traduções da nossa conjuntura na atualidade, coloca-nos em movimento. A ancestralidade e as conspirações para o futuro localizam a espiral de temporalidade na qual nos encontramos. Desse modo interdependente, o que fez sentido antes nos ampara para compreender e reelaborar a nossa existência hoje. Sempre “a partir de”. Assim, transitar essa temporalidade é fundamental. Em especial pelo que está posto em diálogo nesta proposta expositiva, ou seja, o legado de artistas que vieram antes junto a artistas da atualidade, muitos ignorados pelas instituições. É quando as perguntas por séculos silenciadas são feitas: afinal, “quem eram, onde estavam e o que era produzido como arte no tempo das nossas avós?”. Divido questões elencadas por Walker (2021) sobre a produção artística e as conspirações para o futuro. Para estarmos firmes, é preciso retomar essas perspectivas esquecidas pela história para a confabulação de futuridade e de ancestralidade. Começo, meio e começo (Santos, 2023), a inter-relação de epistemologias contra-hegemônicas e contracoloniais articuladas a saberes apresentados a partir da corporeidade, da memória, da comunidade, da oralidade, da musicalidade, da territorialidade, entre outros que determinam modos dinâmicos e mútuos de ver-ser e pensar o mundo. O diálogo entre gerações sob a perspectiva do tempo está como um caminho para rever discursos, imagens e repertórios, para nos colocarmos em comunidade para a coletividade. Estamos confortáveis para rever as coisas do mundo e democratizar os nossos pensamentos?
Referências
SANTOS, A. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora, 2023.
WALKER, Alice. Em busca dos jardins das nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
Ao transitar no tempo e mergulhar no mar da história em busca da arte, vêm-me, confesso, muitas manifestações à mente.
Tendo as terras capixabas como recorte geográfico, imagino, por exemplo, Otto Braga, “o poeta das ruas”, como ficou conhecido, recitando seus versos poéticos em calçadas e vielas, tecidos pela espontaneidade do improviso e enredados pelos amores repentinos e pelas miudezas do cotidiano da capital.
O devaneio da imaginação me leva, também, às rimas batucadas de Beatinho, um homem negro que viveu em São Mateus nos tempos da escravidão e que, nascido livre, costumava vagar pelos rincões do Sapê do Norte fazendo versos cantados e ritmados por um tambor que ele mesmo fabricou. Levava, através da música, acalento aos seus irmãos e irmãs de cor que, desprovidos da dádiva da liberdade, sangravam e morriam em prol de um progresso que não os contemplava.
Descartando a imaginação e recorrendo à memória, lembro-me das rezas e gingas de Maria Laurinda, mestra maior do Caxambu e griô guardiã do quilombo de Monte Alegre, Cachoeiro.
Poderia, ainda, falar das mãos mágicas de Dona Domingas de Goiabeiras, que, com a mesma destreza que benziam, também modelavam panelas de barro; do portar o estandarte de Dona Astrogilda; do dom de compor belíssimos sambas de Aílton Canário… São muitos!
A corrente que rasga o tempo e une, em similaridade, todas estas dádivas artísticas tem cor, origem popular e a genialidade do fazer arte.
Mas, acompanhada dela, é visível também uma densa penumbra. A da negação!
“Pitorescos”, “subarte”, “não arte”!Diversas foram as taxações que impuseram uma constante redução aos saberes e fazeres daqueles que fizeram da arte um ato de pertencimento social.
Ao seguir transitando no tempo e ao retornar à contemporaneidade, descortina-se um cenário que, infelizmente, ainda não se encontra completamente livre da penumbra citada; mas que, felizmente, agora dispõe de uma corrente com elos cada vez mais reforçados pela autognose.
Transitar o Tempo – e toda e qualquer manifestação que exiba a arte daqueles que um dia foram ou ainda são silenciados – é transformar versos, movimentos, batuques, esculturas, performances [enfim, a arte] no mais potente ato de fincamento no mundo!
A concha é um fóssil. Aquela concha que a gente acha na praia, que tem duas partes, é o fóssil de um molusco chamado bivalve. O bivalve possui um corpo frágil, marinho, que suga os nutrientes do mar, construindo a partir deles a sua casa, a sua casca, sua concha dura que o protegerá durante toda a vida. Quando o bivalve morre, a concha permanece no mar e vive sua vida fóssil por longos anos. Em 2018 descobri que meu avô, João Carlos Pereira, construiu uma concha. Uma descoberta inusitada, curiosa, meio sem lugar preciso e ao mesmo tempo gigante. Uma concha de concreto, construída em 1952, no Parque Moscoso. Com revestimento de pastilhas cerâmicas e arremate em granito, a concha é um anfiteatro a céu aberto. Meu avô me contou, orgulhoso e achando graça, a história de como resolveu e assentou as peças de granito no equipamento modernista. Contou-me também sobre a dureza da pedra, sobre as marmorarias do Rio de Janeiro, sobre os caminhões que levavam as placas para Vitória, sobre as pedreiras de Cachoeiro de Itapemirim, sobre os cortes, moldes e desenhos criados e executados por ele. Tudo isso está inscrito na cidade-ilha que meu avô marmorista construiu e na cidade-ilha construída com cal de concha pela empresa colonial. Cidades que se misturam mas não se confundem, nas quais as aprendizagens geológicas informam sobre o resfriamento da lava vulcânica e sobre a cristalização dos minerais, sobre as vidas migrantes que habitavam charcos e pântanos antes mesmo do massacre dos goytacazes, sobre a declaração de “Vitória” que forjou um nome para a cidade com o sangue indígena vertido nas águas da baía. O sangue humano, que possui o sódio em sua composição, possui o tempo de residência – nome dado ao tempo que uma substância dura no oceano – de 260 milhões de anos. Tempo e sangue que estão contidos na concha-fóssil do bivalve, na concha empregada na arquitetura colonial e na concha da arquitetura modernista, erguida pelas mãos negras do meu avô marmorista nesta cidade-ilha.
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